CAPITULO 1


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Runas antigas estava escrito acima de um dos stands montados no saguão do centro de convenções. O enorme centro sediava diversos eventos, tanto da área que Marcus vinha representar, as ciências médicas, como de áreas holísticas, dentre outras.
Marcus gostava de transitar pelos stands e, mesmo que superficialmente, conhecer um pouco de outras formas de conhecimento. Logicamente, sendo um cientista, o tema Runas Antigas apenas serviria para distração, ou no máximo, curiosidade histórica.

O Jogo das Runas, originário do norte da antiga Europa, era uma forma de escrita usada pelos iniciados das tradições oculto-pagãs para transmitir informações mágicas. A pessoa que domina a arte da divinação rúnica chama-se Runemal. Sob o ponto de vista mitológico, a invenção das runas é dedicada ao deus romano da escrita Odin, associado a Mercúrio. Ele foi um chefe poderoso na comunidade de origem asiática. Possuía a capacidade psíquica de entrar em contato com o “mundo dos espíritos” por meio dos poderes da clarividência [...]
Enquanto Marcus lia o painel que explicava o significado do tema, foi abordado por uma moça que parecia ser a responsável pelo stand.
‑ Boa tarde – disse a moça com um sorriso. ‑ Gostaria de jogar? – agora assumindo um ar de mistério – Não é preciso pagar.
Marcus, que estava um tanto fora do seu estado normal naquele dia, olhou surpreso para a moça, que o fazia lembrar os traços físicos de uma de suas filhas. Mas antes mesmo de ele responder que não se interessava e muito menos acreditava em tais métodos, a moça o puxou para um canto e continuou.
‑ Percebi certa inquietação em você e joguei as pedras. Talvez queira saber que a primeira pedra significa mudança e que novos encontros e certos acontecimentos serão revelados – enquanto falava, a moça lhe apontou uma das pedras.
Marcus não deu muita importância ao que a moça falava, embora ela tivesse razão quanto à sua inquietação. Poderia ser uma forma furtiva de uma boa observadora para chamar a sua atenção e vender alguma coisa. Ele fixou o olhar na pedra apontada pela moça que mais parecia um pé de galinha de cabeça para baixo e lembrou que estava com fome e que não teria tempo de comer nada antes da palestra.
Educadamente, Marcus agradeceu e a interrompeu.
‑ Desculpe-me, mas estou atrasado para a minha palestra ‑ e dando as costas, ainda pôde ouvir as últimas palavras dela:
‑ Runa, lembre...
‑ Bobagens, tenho assuntos mais importantes para lembrar – disse Marcus, baixinho, ao se afastar. Não tinha nada cientificamente provado para qualquer dessas “atividades”, pensou.
Marcus havia sido convidado para apresentar uma de suas últimas pesquisas em Genética, área em que tinha se especializado e que vinha desenvolvendo nos últimos anos. Como faltavam alguns minutos para o início da palestra, foi até uma das plataformas do centro de convenções e aproveitou para relaxar. Preocupações com a palestra não tinha, pois reuniões, encontros, congressos já não eram novidade para ele, mas algo o inquietava. Certamente era fome, pensou.
A plataforma tinha vista para o mar, e naquele dia em especial, o mar estava se confundindo com o céu. O sol caía no poente e produzia uma luminosidade que parecia penetrar nos poros e produzir um efeito calmante. Marcus ficou ali, imerso em seus pensamentos por alguns minutos, quando Simas tocou o seu ombro.
‑ Professor, já está quase na hora de sua palestra – disse Simas, com o olhar ansioso.
Marcus levou alguns segundos para processar o chamado de Simas e, olhando para os seus olhos azuis, percebeu a sua ansiedade. Pobre Simas, era a sua primeira participação ao lado de seu conceituado instrutor.
Simas estava na equipe de pesquisa há pouco mais de um ano e viera no lugar de outro rapaz mais experiente. Mas era um bom aprendiz, e na sua ansiedade de novato, era participativo e tinha grandes expectativas e projetos; certamente chegaria aonde queria. Em alguns momentos, ele fazia Marcus recordar-se de si mesmo.
Marcus respirou fundo, virou-se para Simas, e os dois caminharam a passos largos em direção ao auditório.
A palestra ocorreu como de costume. Após algumas apresentações pelo coordenador da mesa, com todas as pompas e todos os elogios, Marcus iniciou a exposição. A plateia heterogênea, constituída por estudantes e profissionais de diversas áreas das ciências médicas, em sua maioria estava atenta, um ou outro a pestanejar, aproveitando o escurinho e o quase transe hipnótico causado pela projeção.
Marcus encerrou o assunto e gentilmente passou a palavra ao coordenador da mesa para dar início ao debate e ao esclarecimento de eventuais comentários e questionamentos proferidos pela plateia. Entretanto, considerar eventuais os comentários era ser, no mínimo, inexperiente. Em geral, era o momento em que, camuflados em falsa modéstia, todos esperavam ansiosos ter acesso ao microfone.
Sempre apareciam aqueles que faziam comentários dos mais banais, e vislumbrados pelo sucesso da aparição momentânea, não percebiam o ridículo. Mas, infelizmente, a maioria não percebia e ainda ovacionava.
Marcus costumava adorar essa etapa do “ritual”, mas estava intolerante e inquieto. Simulou uma indisposição, deixando Simas encarregado de esclarecer os questionamentos.
Simas, que até então mantinha a ansiedade estampada no rosto[J1] , parecia haver tido um mal súbito: ficou branco, e uma gota de suor escorreu de sua têmpora. Marcus achou que Simas fosse desmaiar antes mesmo que ele próprio desmaiasse, já que a ideia da indisposição partiu dele. Contudo, mais por compaixão do que por interesse, Marcus inclinou-se sobre o rapaz, e simulando dar orientações, soprou palavras de otimismo.
‑ Você é capaz, preciso de você... – disse Marcus, tentando passar confiança para Simas.
Aos poucos, Simas foi recuperando a cor, e embora ainda ansioso, assumiu o papel e reconheceu a sua “grande chance”. Afinal, ainda fazia parte do grupo de ovacionadores.
Marcus passou rapidamente pelo saguão e direcionou-se aos elevadores. O hotel no qual estava hospedado ficava junto do centro de convenções. Era um hotel luxuoso, com grandes janelas de vidro espelhado na fachada e junto ao elevador panorâmico. Na recepção havia confortáveis estofados e quadros de pintores renomados nas paredes. Carregadores de bagagem corriam de um lado para o outro atendendo os hóspedes que impacientemente esperavam no balcão de atendimento.
Já no quarto do hotel, Marcus pensou em aproveitar a piscina, mas há muito não colocava um calção de banho; imaginou o espanto que causaria e decidiu ficar no quarto assistindo, quem sabe, a um daqueles programas que distraem o povo e deixam suas cabeças vazias. Com o controle remoto na mão, começou a passar de canal em canal freneticamente.
‑ Não sei para que tantos canais se não têm nada que preste! – disse Marcus, irritado.
O controle começou a falhar e parou de funcionar em um canal que estava apresentando um programa rural, o que fez Marcus lembrar a sua infância.
Marcus havia sido criado em uma cidadezinha do interior, junto com seu irmão Mateus. Como geneticista, Marcus não poderia deixar de se questionar como ele e seu irmão poderiam ser gêmeos idênticos, com o mesmo código genético, a mesma criação e ser tão diferentes.
Marcus nunca foi chegado a esforço físico, sua distração era colecionar animais peçonhentos em vidros com álcool, que recolhia nos terrenos da fazenda onde morava. Adorava ler e assistir a programas de televisão que tratavam de fauna e de outros assuntos relacionados, mesmo com dificuldade, já que a transmissão de qualquer programa na região era deficitária.
Já Mateus sempre teve porte atlético, mantido pelo trabalho braçal que executava na fazenda, não gostava de estudar, e até hoje, é acomodado, passivo diante da vida, e ainda mora na fazenda, junto dos seus pais.
Marcus, desde pequeno, não aceitava a vida que a família levava. Até tentou adaptar-se à vida na região, mas não teve sucesso. Perto da fazenda havia uma cidadezinha onde ele e seu irmão frequentavam as reuniões dançantes no Clube Comercial. Em uma dessas reuniões, Marcus conheceu Beatriz, uma moça de cabelos cacheados, olhos verdes, linda e, consequentemente, a mais cortejada do baile. Tentou impressioná-la, mas seu irmão, mesmo sem fazer força, atraiu o olhar da moça.
Indignado com a atitude previsível dela, Marcus tinha mais um motivo para sair dali. Certamente, Beatriz seria como sua mãe e suas amigas, peruas da “alta sociedade do fim do mundo”, que ostentavam grifes, desfilavam em um conversível, participavam de reuniões beneficentes, proclamavam grandes atitudes e falavam da vida alheia. “Como estaria Beatriz?”, pensou Marcus.
Nesse momento lembrou-se de Ana, sua esposa, e sentiu culpa. A jovem com quem tinha se casado, embora não tivesse se transformado em uma daquelas senhoras que frequentavam o Clube Comercial, estava distante dele, por anos de vida em comum.
Curioso como as pessoas culpam o tempo, tanto o excesso como a falta dele, no lugar de suas próprias escolhas.
Conheceu Ana quando saiu de casa para a universidade da capital, após ter sido aprovado para Medicina, um dos cursos mais concorridos. Embora seus pais não concordassem com a escolha do filho, pois gostariam que ele, assim como Mateus, assumisse o negócio da família, apoiaram sua decisão e ajudaram a custear seus estudos. No fundo, seus pais sempre souberam que Marcus era “um estranho no ninho”.
Quando Marcus conquistou mais experiência, tentou convencer seu pai de que um pouco de tecnologia só traria benefícios à vida da família e poderia ajudar no trabalho também. Mas seu pai era resistente e dizia que, para o tamanho do negócio, não era preciso, e que ele estava acostumado àquela vida.
Imerso nas lembranças, estava quase adormecendo quando o celular tocou. Embora o aparelho não identificasse um número conhecido, Marcus pôde deduzir que a ligação era de um local com o mesmo DDD de sua cidade. Pensou em não atender, mas não conseguiu ignorá-lo. Como um bom cão treinado, atendeu ao chamado do aparelho.
‑ Alô. – resmungou Marcus, a contragosto.
Quem falou do outro lado da linha foi Fred, casado com a irmã de sua mulher Ana. Um sujeito de personalidade fraca, que vivia à sombra da mulher e gaguejava em situações difíceis.
‑ A. A. Alô, é... é o F...F...Fred – falou, gaguejando e deixando Marcus apreensivo – A...A...Ana so...so...sofreu um aci...cidente e..e...está em moooorte ce...ce...cerebral no Hospital de Clínicas.